Sono involuntĂĄrio? Conheça a sĂ­ndrome da sonolĂȘncia excessiva no trabalho e outras atividades

DistĂșrbio não tem cura e afeta diretamente a rotina dos pacientes

Por Úrsula Neves, da Agência Einstein em 26/12/2023 às 10:31:38

Existe uma síndrome rara que provoca sono involuntĂĄrio durante o trabalho e outras situações que podem ser perigosas como, por exemplo, quando a pessoa estĂĄ dirigindo. Esse distúrbio neurológico, chamado de narcolepsia, pode afetar as atividades do dia a dia por conta da vontade excessiva de dormir em qualquer hora ou lugar. A doença também paralisa o paciente durante o repouso e pode provocar alucinações durante o sono, como a pessoa sentir que estĂĄ sonhando acordada, além de episódios temporĂĄrios de fraqueza muscular (cataplexia).

Os ataques de sono podem ocorrer diversas vezes durante o dia, sem o controle do indivíduo. Quem sofre com narcolepsia pode adormecer involuntariamente mesmo que esteja conversando, dançando, comendo ou até mesmo dirigindo. Com frequĂȘncia, após esses cochilos — que podem durar de dez minutos a mais de uma hora — os pacientes sentem-se mais descansados.

O estudante de medicina Vitor Dmetruk Carvalho, 21 anos, sabe das dificuldades de viver com narcolepsia. Ele foi diagnosticado aos 15 anos e conta que sofreu bullying durante todo o ensino médio. "Perdi vĂĄrias matérias e provas, mas o pior era não ter a compreensão dos colegas de turma, que sempre faziam brincadeiras de mau gosto comigo", lembra.

Suas crises acontecem nas mais diversas situações, sejam elas monótonas (quando o sono aparece com mais frequĂȘncia e intensidade) ou em atividades corriqueiras, como estudar, comer e praticar atividades físicas. O estudante diz que o sono profundo acontece até mesmo em momentos alegres e prazerosos.

"JĂĄ deixei de fazer a prova de vestibular, dormi diversas vezes na aula e nas provas, na academia e enquanto tocava bateria. Quando o sono vem, tenho que deitar atrĂĄs da bateria e tirar um cochilo por alguns minutos. Não consigo evitar. Antes de receber o diagnóstico, cheguei a sentir sono durante o passeio a um parque temĂĄtico. Isso sem falar quando estou andando de ônibus e até de bicicleta. Quando isso aconteceu, tive que parar de pedalar, sentar em algum banco e esperar o período de sonolĂȘncia terminar", revela.

Após o diagnóstico, os pais de Carvalho receberam orientações sobre os cuidados com a rotina e a higiene do sono — um conjunto de prĂĄticas que devem ser seguidas antes de dormir, com o objetivo de facilitar o início do sono — a fim de reduzir os episódios de sonolĂȘncia durante o dia. Apesar desses cuidados e do uso da medicação indicada pelos médicos, o estudante ainda enfrenta crises durante o dia, com uma média de trĂȘs episódios, cada um com duração de pelo menos 30 minutos.

O que causa a narcolepsia?

A ciĂȘncia ainda não conhece o mecanismo que leva ao desenvolvimento de todos os casos de narcolepsia. Contudo, evidĂȘncias consistentes sugerem que pessoas com predisposição genética, quando expostos a algum gatilho ambiental (como infecção ou vacinação, por exemplo), ativam o sistema imunológico, desenvolvendo células de defesa contra um grupo de neurônios específicos de uma região cerebral conhecida como hipotĂĄlamo lateral.

"Esses neurônios são responsĂĄveis pela produção da hipocretina, substância que promove o despertar e mantém a estabilidade das fases do sono. Com a queda da hipocretina, os indivíduos ficam susceptíveis a uma maior sonolĂȘncia e instabilidade no decorrer do sono, sobretudo do período do sono REM (sigla em inglĂȘs para movimento rĂĄpido dos olhos, que é a fase mais profunda do sono)", explica o neurologista Lúcio Huebra, que é mestre em Psicobiologia (Medicina do Sono) e professor do curso de Medicina do Centro UniversitĂĄrio São Camilo, além de membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, da Associação Brasileira de Sono e da European Sleep Research Society.

"Além disso, algumas lesões cerebrais, como encefalites ou esclerose múltipla, também podem causar narcolepsia", complementa o neurologista e neurofisiologista clínico Leonardo Ierardi Goulart, especialista em medicina do sono e médico do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.

Mais comum entre os jovens.

O surgimento dos primeiros sintomas, como sonolĂȘncia excessiva, alucinações ao adormecer ou acordar, e paralisia do sono, é mais comum entre os jovens, apresentando dois picos de incidĂȘncia, por volta dos 15 anos e, posteriormente, dos 35 anos. As estimativas globais indicam uma prevalĂȘncia variĂĄvel de 0,1 a 17 pessoas para cada 100 mil habitantes. No Brasil, observa-se uma prevalĂȘncia intermediĂĄria, mas ainda não hĂĄ dados concretos disponíveis. Segundo especialistas entrevistados pela AgĂȘncia Einstein, não existem diferenciações étnicas significativas, embora haja uma leve tendĂȘncia de o problema ser mais comum em homens.

No Brasil, não existe uma legislação específica que oriente em relação ao risco de acidentes de trânsito ou de trabalho em indivíduos com narcolepsia. A decisão sobre os riscos de acidentes em situações de perigo, especialmente relacionados à direção de veículos, cabe ao médico, em conjunto com o paciente. Em alguns países, é realizado um teste para avaliar a capacidade da pessoa de se manter acordada (teste de manutenção da vigília) antes da liberação da permissão para condução.

Medidas comportamentais tĂȘm papel fundamental no tratamento.

A narcolepsia não tem cura. O tratamento visa exclusivamente controlar os sintomas, como a sonolĂȘncia excessiva durante o dia. Para isso, são prescritos medicamentos estimulantes de uso controlado, que promovem um maior estado de alerta. No caso de outros sintomas, é necessĂĄrio combinar o uso de medicamentos da classe dos antidepressivos — a prescrição não se baseia no efeito desses medicamentos no humor, mas sim em seu impacto direto no sono, evitando a ocorrĂȘncia desses fenômenos.

"Infelizmente, o tratamento completo disponível no Brasil não é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou por convĂȘnios médicos. Apenas alguns dos antidepressivos usados no tratamento da cataplexia são distribuídos gratuitamente. As medicações são de alto custo, dificultando o tratamento adequado no país, especialmente nas doses necessĂĄrias para um adequado manejo", ressalta o neurologista Huebra.

Os especialistas destacam que algumas medidas comportamentais tĂȘm papel fundamental no tratamento, como cultivar uma boa higiene do sono, procurar não dormir tarde e evitar o uso de telas à noite, além de tirar cochilos curtos programados e distribuídos ao longo do dia para evitar adormecer em situações inapropriadas.

Ao longo da evolução do distúrbio, é comum o indivíduo apresentar outros sintomas associados, como ganho de peso e/ou obesidade, desenvolvimento de apneia do sono, transtornos psiquiĂĄtricos — principalmente depressão e ansiedade — e aumento do risco cardiovascular.

Huebra ressalta, ainda, que existem benefícios de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, incluindo educador físico, nutricionista e psicólogo, visando a melhora de outras medidas comportamentais, como a prĂĄtica de atividade física aeróbica, o controle de peso, e de sintomas depressivos e ansiosos.

"A cafeína, por exemplo, é um estimulante de amplo acesso que pode ser usado em casos de sonolĂȘncia diurna, porém, como na narcolepsia hĂĄ uma tendĂȘncia de sono noturno fragmentado, é recomendado a redução do consumo no período noturno, sobretudo próximo ao horĂĄrio de dormir", pontua o médico.

Pacientes em tratamento apresentam uma melhora de qualidade de vida com atenuação dos sintomas, porém uma remissão completa das queixas é geralmente difícil, mesmo com o tratamento otimizado.

"Algumas limitações podem persistir, como a tendĂȘncia de adormecer em atividades monótonas e pouco ativas, risco de acidentes por cataplexia, necessidade de cochilos programados em intervalos de trabalho ou estudo", adverte Goulart.

O estudante de medicina diz que mesmo em tratamento e tendo aprendido a lidar com a síndrome, ainda tem muitas crises de sono de dia. "Isso me deixa abalado de certa forma. Essa rotina afeta, principalmente, os meus estudos e as relações sociais. E depois de cada crise de sono durante o dia fico muito triste. Quanto mais crises de sono tenho, mais triste fico. É um ciclo que se retroalimenta sempre", conta Vitor Dmetruk Carvalho, que faz consultas de rotina no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), com uma equipe médica formada por um neurologista, um médico do sono e um psiquiatra.

Atualmente, ele convive com professores e colegas de faculdade que compreendem a situação e o auxiliam na rotina de estudos. "Consegui me cercar de mais pessoas que entendem e demonstram empatia em relação às minhas dificuldades e necessidades. Essa rede de apoio faz muita diferença na minha vida", assegura o estudante de medicina.

Fonte: AgĂȘncia Einstein

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