Eles são filhos de empregadas domésticas, trabalhadores rurais e motoristas de ônibus. O que possuem em comum? São os primeiros da família a entrarem no curso de Medicina na Universidade Federal da Bahia (FMB/Ufba). Para isso, precisaram nadar contra uma maré de obstáculos econômicos e sociais que tentavam, incansavelmente, afastá-los dos seus objetivos. O CORREIO conta histórias de jovens que ajudam a mudar a cara do curso historicamente branco e elitizado em Salvador, cidade de população majoritariamente negra.
Durante os quatro longos anos que se desdobrou para conseguir estudar para o vestibular e trabalhar, a pernambucana Erica Maria Silva, 31 anos, fez de tudo. Mudanças de cidade e de curso, trabalho como atendente de telemarketing e professora de redação foram algumas das maneiras encontradas para driblar as adversidades. Mesmo assim, tiveram vezes que o pouco dinheiro na carteira servia para pegar o ônibus ou completar o valor do aluguel.
"Uma vez faltavam 10 reais para pagar o aluguel e eu não tinha. Liguei para minha mãe e ela não podia me ajudar, paguei devendo esse valor", relembra Erica dos momentos difíceis. Filha de diarista, ela não pôde contar com ajuda financeira da família enquanto estudava e pensou incontáveis vezes em desistir.
"Na reta final, eu estava tão cansada de estudar e via pessoas com vidas totalmente diferentes da minha passando em Medicina, que cheguei a acreditar que aquilo não era para mim", conta. A tão sonhada aprovação veio em 2019, por meio das cotas de critérios raciais, socioeconômicos e escolaridade. O primeiro passo para se tornar a primeira médica da família estava dado, mas, para isso, ela precisou se mudar para a capital.
O que encontrou, quando entrou na Faculdade de Medicina, foram colegas e professores com origens diferentes da dela. "Pelos discursos dos professores e dos alunos, é quase como se eles dissessem 'você é preto e pobre' e, 'se dependesse de nós, não estaria aqui'", desabafa a estudante. Para ela, o ambiente universitário, no entanto, tem se tornado mais plural.
Um semestre antes da entrada de Erica na Ufba, a banca que examina a veracidade da autodeclaração como pessoa negra foi aplicada. "A partir da implementação da banca examinadora, o perfil dos alunos começou a mudar. Antes, era muito raro ver pessoas pretas e pardas no curso de Medicina; a gente percebe mudanças com o passar dos anos", analisa. Hoje, dos 1.015 alunos da FMB/Ufba, metade é formada por cotistas.
Carga horária reduzida
A cada semestre, 80 novas vagas são abertas no curso de Medicina, sendo que 40 delas são reservadas para cotistas. O olhar atento para a mudança do perfil dos novos alunos, muitos que precisam trabalhar para se manter, fez com que a FMB optasse por reduzir em 1.590 horas a carga horária da graduação. A mudança começou a valer este ano.
"Nós passamos por uma reformulação curricular que atende a demanda do novo perfil dos estudantes. Não são todos que podem se dedicar o dia inteiro aos estudos", explica Sandra Dantas, pedagoga da Faculdade de Medicina da Ufba.
Fonte: A Voz da Região / Correio24Horas