Ser mulher é enfrentar diariamente a insegurança e o medo de que algo aconteça apenas pela questão de gênero. Essa batalha cotidiana inclui o simples ato de se locomover pela cidade. No Distrito Federal, elas sofrem com a importunação sexual nos transportes públicos e essas situações não são por acaso. Estão ligadas diretamente com a forma como os meninos crescem e são educados. Mesmo diante de uma sociedade com diversos avanços, esta é apenas uma das sequelas do machismo estrutural que permeia o cotidiano.
Ao ser questionada pelo Correio, a Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob) informou que trabalha com campanhas educativas para combater o assédio sexual dentro dos ônibus. A pasta esclareceu que os motoristas e cobradores são orientados a, caso presencie o ato, conversar com a vítima para que ela faça o registro da ocorrência. Se a vítima procurar relatar o crime ao motorista, o mesmo deve acionar a autoridade policial.
O órgão acrescentou que, desde 2019, por meio das portarias 96/219 e 170/2020, as empresas de ônibus estão obrigadas a encaminhar as imagens gravadas de crime ocorrido dentro dos coletivos a uma delegacia de polícia, no prazo de 24 horas, a contar do momento em que ocorreu o fato. A medida tem o objetivo de facilitar o trabalho da Polícia Civil nas investigações criminais e inibir a prática de assédio sexual. As imagens podem servir de provas nas investigações e condenações dos criminosos.
Em nota, o Metrô-DF alertou que, em caso de importunação sexual, a orientação é que a vítima procure imediatamente um segurança ou qualquer agente de estação. Esses servidores são treinados para acolher a mulher, identificar o suspeito e encaminhar aos órgãos competentes, para as devidas providências legais.
A estudante Mylena Rodrigues, 25 anos, testemunhou a ação positiva de um motorista de ônibus. "Eu estava em um ônibus que ia de Taguatinga para o Gama, e uma menina que estava sentada lá atrás levantou e saiu gritando que o cara sentado do lado dela colocou o órgão sexual pra fora e falou pra ela olhar. Ela estava extremamente nervosa e o cara ficou negando, gritando e batendo na porta, pedindo pra descer. O motorista travou todas as portas e não deixou ninguém descer e foi direto para a delegacia do Gama. Chegando, os policiais cercaram as portas e só então o motorista abriu. Então o homem desceu e foi pra delegacia", relatou.
Uma cobradora, que não quis se identificar, contou que sofreu assédio no transporte e, quando conseguiu o emprego para trabalhar diariamente em um ônibus coletivo, sentiu medo. "Entrou um senhor bêbado no ônibus e teve uma hora que eu ouvi uma passageira falando que se ele pegasse na minha bunda ela iria pedir pro motorista parar o ônibus para ele descer e, quando eu olhei ele estava de fato tentando pegar, eu fiquei muito brava e pedi para ele parar. Depois, o motorista me alertou que eu poderia ter pedido para ir a delegacia ou para que o homem descesse", detalhou.
As estatísticas sobre mulheres que sofrem no transporte público diariamente são alarmantes, porém, o número está longe de ser exato. Isso porque muitas não fazem ocorrência e preferem se calar por constrangimento ou medo. A psicóloga Jhonda Siqueira explica que é muito difícil para a mulher denunciar, porque é necessário expor a situação de um momento em que se sentiu vulnerável e diminuída. "Outra questão é a família da vítima. Essa mulher vai chegar em casa e explicar o ocorrido e, dependendo do marido, ele vai questionar até se ela não deu algum sinal para a pessoa se aproximar. Sendo julgada até por não ter reagido", diagnosticou.
Ainda segundo a psicóloga, as vítimas geralmente ficam com sequelas, seja fobia social sela pânico de locais lotados e com muitos homens. A assessora jurídica Anna Carolina Fiore, de 25 anos, adquiriu trauma de andar de transporte público. "Depois da faculdade, eu peguei o ônibus e estava sentada. O veículo estava lotado, e com direção pra rodoviária, quando um homem ficou esfregando a pélvis dele na minha cara. Eu fiquei sem reação, eu tentava só me desvencilhar, mas o cara continuava e eu desci na primeira parada que tinha por medo", disse a assessora.
Ana não denunciou e nunca mais conseguiu andar de ônibus com sensação de segurança. "Eu sinto pavor quando tenho que andar de transporte público", confessou, reforçando que muitas mulheres travam após o ocorrido e não conseguem reagir. Jhonda explica que isso ocorre porque elas entram automaticamente em estado de choque, sem conseguir acreditar que aquela situação esteja de fato acontecendo.
Uma vítima que preferiu deixar a identidade em anonimato contou que teve o corpo filmado por um homem. "Eu estava de costas e ele ficou filmando meu corpo sem a minha autorização. Por um reflexo meu, eu percebi que ele estava mexendo com a câmera do celular e, assim que ele viu que percebi, parou e fingiu que nada estava acontecendo e, na hora, eu fiquei tão chocada que não tive reação alguma, fiquei muito constrangida e com muito medo", desabafa.
A psicóloga fala que o que faz o abusador é a ocasião. "Ele vê uma mulher que atrai e se sente anônimo. Ele acha que ninguém vai ver ou perceber se ele tocar, esfregar. Não acha que vai ser descoberto e se aproveita de um ônibus lotado. E têm aqueles que fazem isso como hábito, têm o prazer em tocar sem que a vítima se defenda. Um fetiche de poder, o fato de estar em público coage, usa da vergonha que ela vai sentir para não fazer nada. Mas, também existem aqueles que dizem que a mulher queria ser tocada, por estar com determinada roupa, posição ou de alguma forma que, na cabeça dele, ela estava convidando", acrescentou Jhonda.
Fonte: A Voz da Região / Correio Braziliense