A quantidade de armas novas registradas na Bahia deu um salto nos últimos quatro anos. Nos três primeiros meses de 2019, foram 400 registros novos de armas de fogo no estado. Neste ano, o número cresceu para 1.363, o que representa um aumento de 240%, segundo dados da Polícia Federal. A escalada se dá em um momento em que o governo federal se mostra favorável ao armamento da população.
Vinícius Neves, 35, tem em sua árvore genealógica amantes de armas de fogo. Por conta da família morar na zona rural, no interior do estado, onde o policiamento é fraco - quando não, nulo -, o advogado se acostumou a ter pessoas armadas ao seu redor. Ele conta que um de seus tios chegou a ser campeão de tiro em uma competição no Espírito Santo.
Quando medidas do governo Bolsonaro passaram a flexibilizar a posse de armas no país, Vinícius, que mora atualmente em Vitória da Conquista, decidiu comprar a sua primeira e, por enquanto, única arma. "Quando teve essa oportunidade que flexibilizou um pouco o acesso, eu decidi ter. Quando eu comprei, achei que fosse ficar muito mais ativo no clube de tiro, mas não foi o que aconteceu, por conta do tempo e do custo", diz o advogado.
Sua arma é uma pistola G2C - 9mm e foi comprada em 2019 por R$ 4.500. Atualmente, Vinícius Neves frequenta o clube de tiro uma ou duas vezes ao mês. Apesar de nunca ter precisado utilizar a arma, diz que a posse transmite sensação de segurança. O advogado não possui o porte de armas, mas pode andar com a pistola se estiver no trajeto entre sua casa na cidade e a fazenda, a cerca de 160 quilômetros de distância.
"Já passei por dois assaltos e sei como é estar com uma arma apontada para a cara ou colada no peito. Lógico que ter uma arma não evita passar por situações como essas, mas possibilita que eu tenha o direito de reação, se eu for capacitado para isso", diz Vinícius, que pretende adquirir mais armas em breve.
Vinícius Neves comprou sua pistola em 2019, quando houve uma série de flexibilizações feitas pelo governo federal (Foto: Acervo Pessoal) |
Pequeno arsenal
Em fevereiro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro assinou quatro decretos que flexibilizaram o uso e a compra de armas de fogo no Brasil. Uma das medidas foi justamente o aumento do número de armas que o cidadão comum pode adquirir, que subiu de quatro para seis. O governo também passou a permitir o porte simultâneo de duas armas.
Para Sandro Cabral, professor de estratégia no setor público no Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa - e na Universidade Federal da Bahia (Ufba); e autor de trabalhos na área de segurança pública, a posse e o porte de armas além de não diminuírem a violência, transferem a responsabilidade de conter o crime para os cidadãos comuns. Esses que, muitas vezes, podem não ter recebido o treinamento correto.
"Imagine você ser vítima de um assalto. É horrível ter o celular roubado, mas se tem alguém armado ali, a chance de alguém reagir é maior e o prejuízo que poderia ser só o celular, pode ser a vida [...] Querer armar a população é uma forma de eximir a polícia da sua responsabilidade de patrulhar e fazer investigações", afirma Sandro Cabral.
Tradição
O médico cirurgião Wanilton Rios, 52, ganhou sua primeira arma como um presente de seu pai, quando tinha 14 anos. Era uma de pressão. Desde novo acostumado a conviver com armas de fogo em Mairi, onde nasceu, hoje o médico tem porte legal de três armas.
Wanilton vive em Senhor do Bonfim e possui o certificado de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC). O médico nunca precisou utilizar as armas para se defender e faz uso delas em clubes de tiro especializados.
"Uma coisa é atirar em uma silhueta metálica em um clube, outra é atirar em um ser humano. São completamente diferentes e eu não sei se todos estariam preparados para isso", afirma.
Apesar de ser a favor da posse, Wanilton acredita que é preciso ter cautela. "Tem ocorrido um incentivo [do governo], que antes não existia, e eu sou a favor que a pessoa possa ter sua arma se for idônea e tiver tudo legalizado. Mas tem que saber também que o que acontecer com ela [arma] é de sua responsabilidade", diz.
Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o advogado Ivan Marques explica que em sociedades onde a violência já predomina, o uso de armas não torna a cidade ou país mais seguro. "Experiências feitas no mundo inteiro apontam que a arma de fogo sozinha não costuma ser geradora de violência. Mas em sociedades que já apresentam comportamentos violentos, como é o caso da Bahia e do Brasil todo, isso estimula o uso de armas em conflitos interpessoais. O que acaba gerando mais mortes do que se as armas não estivessem presentes", diz.
Em janeiro de 2019, no início de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro flexibilizou a posse de armas para moradores de áreas rurais ou de cidade ou estado em que a taxa de homicídios seja superior a 10 para cada 100 mil habitantes. A Bahia possui taxa de 8,8 mortes para cada 100 mil habitantes, de acordo com o Monitor da Violência, feito pelo G1.
No primeiro ano de flexibilizações para a posse de armas, o estado registrou 5013 homicídios dolosos - o número significa uma queda de 6% em relação ao ano anterior, quando houve 5346 mortes do tipo. Três anos depois, quando adquirir uma arma se tornou mais fácil, o quantitativo saltou para 5532, em 2021, o que representa um aumento de 10% no número de mortes violentas na Bahia. Em 2020 foram 5360 homicídios, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que não específica se os homicídios no estado foram causados por arma de fogo.
Acidentes
Casos que resultam em mortes com disparos acidentais de armas de fogo não não incomuns na Bahia. Na segunda-feira (13), um menino de 12 anos morreu após ser baleado pelo irmão de 8 anos, na zona rural de Remanso. O menino mais novo estava com a espingarda do pai e, ao tentar carregar a arma, acabou disparando.
Quando a polícia chegou ao local, encontrou Wagner Lopes de Almeida morto. O pai dos meninos e dono da arma poderá responder por posse irregular de arma de fogo e omissão de cautela, segundo a Polícia Civil.
Em abril deste ano, um menino de 10 anos também faleceu após ser atingido por um disparo acidental de espingarda no povoado de Santa Maria Eterna, em Belmonte. Pedro Jorge Vale Nascimento estava limpando o quintal de casa com o irmão mais velho.
De todas as 11 categorias de pessoas que podem ter registro de armas de fogo, a de cidadãos é a que possui a maior quantidade de armas novas, ainda de acordo com dados da Polícia Federal. Do total de 1.363 armas no estado, 1.092 são de pessoas comuns - o equivalente a 80%.
Em seguida, estão as pessoas que possuem armas por conta da função pública que ocupam (164) e empresas de segurança privada (87%). Exceto em 2020, quando houve um número atípico de registros de armas para órgãos públicos, em todos os outros anos, os registros para cidadãos lideram o ranking.
Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, afirma que em alguns momentos o uso de armas de fogo por pessoas comuns pode ter êxito. Como, por exemplo, se alguém invade uma casa e o proprietário percebe antes que seja tarde. Mas, em geral, a diretora acredita que as armas causam mortes desnecessárias.
"A arma não mata ninguém sozinha, obviamente, mas ela catalisa situações que não precisariam do uso de armas, como brigas entre vizinhos e no trânsito. Também temos percebido que tem aumentado o percentual de mulheres mortas em residências por arma de fogo", afirma Carolina Ricardo. O Instituto Sou da Paz tem a missão de contribuir para a implementação de políticas públicas de segurança eficientes.
As armas de fogos são um bem visado por criminosos em todo o país, tanto pelo seu valor como pela sua função. Por isso, acabam indo facilmente parar no mundo do crime, através da venda direta ilegal ou assaltos.
Um estudo feito pelo Instituto Sou da Paz em parceria com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santos, apontou que 30% das armas usadas em crimes que tinham número de série vieram do mercado legal. A análise foi feita com 8.862 armas apreendidas no estado. Da amostra de 1.404 com número de série, 420 estavam registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm).
"O estudo aponta que 73% das armas apreendidas no crime são nacionais, o que derruba aquele mito de que elas vêm só pelas fronteiras do país", diz Carolina.
Para Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estudo mostra que as armas não nascem ilegais, mas que acabam indo parar nas mãos do crime organizado.
"É muito raro ver uma arma artesanal fabricada em algum fundo de quintal. A maioria das armas apreendidas pela polícia em crimes são nacionais e vendidas no Brasil. Isso quer dizer que a arma não foi desviada na fábrica, ela foi vendida para alguém que perdeu para o crime", explica Ivan Marques.
Uma operação policial realizada no Espírito Santo e mencionada no estudo do Instituto Sou da Paz, descobriu que um grupo criminoso recrutava pessoas para se inscrevessem como CACs, terem acesso legal às armas e depois repassá-las. Mas, além de casos como esses, armas também podem parar no crime através de assaltos.
"Ainda que bem intencionado, um cidadão que leva uma arma para casa, corre o risco dessa mesma arma parar na mão de criminosos", acrescenta o advogado
A Polícia Federal e a Secretaria de Segurança da Bahia foram procuradas, mas não forneceram dados sobre a quantidade de armas de fogos legais apreendidas em operações policiais no estado.
Para cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país conseguirem ter acesso a arma de fogo, é necessário ter idade mínima de 25 anos; declarar necessidade de possuí-la; comprovar idoneidade (apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais); apresentar documento comprobatório de ocupação e residência além na necessidade de comprovação de capacidade técnica e aptidão psicológica.
Preenchendo os requisitos, é preciso realizar uma solicitação através do GOV.BR e comparecer à unidade da Polícia Federal selecionada para a entrega da documentação necessária.
Quando a arma for enfim adquirida, deve ser registrada em um prazo de até 15 dias. Neste processo é expedida a guia de trânsito, que autoriza o transporte da arma do estabelecimento comercial ao local de guarda.
A reportagem entrou em contato com a Secretária de Segurança Pública (SSP) em busca de dados sobre o número de homicídios, feminicídios e lesões corporais seguidas de morte ocorridos nos últimos quatro anos no estado, mas até a públicação desta reportagem não houve resposta. A Polícia Federal (PC) também foi procurada para informar os tipos de armas de fogo mais registrados na Bahia no mesmo período, mas não houve retorno.
Fonte: Correio